O tribunal invisível — parte 2: o que faz de uma escrita, literatura?

 OPINIÂO 
21/11/2023  | Tiago Juliani

A pergunta é sempre feita como se existisse um órgão regulador pairando acima das páginas. Um comitê invisível, composto por gente que supostamente sabe, capaz de decidir o que tem valor estético e o que não passa de um amontoado de palavras. Uma instância silenciosa que distribui selos de autenticidade literária aos que “merecem” e recusa o resto ao campo do texto ordinário. Como se a literatura fosse um clube com poucos lugares disponíveis e uma porta de entrada guardada por fiscais de credencial.

Mas literatura nunca dependeu desse tribunal imaginário. Literatura não é aquilo que é aceito — é aquilo que acontece. Literatura não é o rótulo que dão — é o efeito que produz. A literatura se reconhece quando a linguagem não está ali para cumprir uma função prática, mas para instaurar uma experiência. Quando a frase não carrega o mundo apenas como informação, mas como forma de perceber e de sentir alguma coisa que não estava nomeada antes.

É claro que existem elementos que ajudam a construir essa categoria: densidade, ritmo, textura, escolha de imagens, o modo como uma voz singular se faz ouvir. Mas esses elementos não funcionam como checklist; funcionam como modos de operar o real. A literatura cria uma fissura dentro da própria linguagem. E essa transformação não depende de chancela institucional, de prêmios, de curadoria, de editora. Depende da força interna da escrita.

O tribunal invisível existe apenas porque nós ainda acreditamos que a legitimação da literatura se dá de fora para dentro. Mas é sempre o contrário. É o texto que inaugura o lugar. Não é o lugar que define o texto. E quando um texto consegue produzir esse efeito — quando o leitor sai dele com algo que não tinha antes — então pouco importa se a escrita veio de uma grande editora, de um blog independente ou de um caderno de anotações esquecido numa gaveta.

No fim, literatura não é um título: é uma experiência estética em linguagem. É o momento em que a frase deixa de ser instrumento e passa a ser mundo. É ali, naquele instante silencioso, que a literatura se reconhece — e se cumpre.

No prelo: Correspondência inédita revela os bastidores do Boom latino-americano

 DIVULGAÇÂO 
09/11/2025

Entre os anos 1950 e 1970, a literatura latino-americana passou de periferia a centro do mapa mundial. Foi o período em que Cortázar, Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa se tornaram nomes incontornáveis — não apenas por seus livros, mas pela energia intelectual e política que os aproximou. Agora, As cartas do Boom reúne a correspondência trocada pelo quarteto e oferece uma chave rara para observar esse processo por dentro.
Longe da versão mitificada de “explosão espontânea de talentos”, as cartas revelam uma constelação movida por afinidades estéticas, ambições, tensões ideológicas e cumplicidade afetiva. Há bastidores de criação, dilemas editoriais, debates sobre golpes militares, repercussões do impacto de Cem anos de solidão, projetos de férias compartilhados, e também fraturas — solidariedade e conflito na mesma mesa.

Mais do que registro biográfico, As cartas do Boom permite reconstruir a pré-história e a engrenagem íntima de um dos fenômenos literários mais decisivos do século XX. Um acervo epistolar que ilumina não só como esses autores escreveram obras que mudaram o curso da literatura, mas também como imaginaram o papel do escritor latino-americano diante de um mundo em convulsão permanente.


Editora Record
590 páginas

O tribunal invisível: o que faz um escritor, escritor?

 OPINIÃO 
07/11/2025 | Tiago Juliani

Há uma espécie de mal-entendido instalado no imaginário: o de que escritor é alguém que publica. Como se o status se constituísse do lado de fora da frase — no catálogo da editora, no ISBN, no convite para a mesa de debates. Mas a literatura não nasce quando o livro chega à livraria. Ela nasce no momento em que alguém encontra um modo singular de pensar através da linguagem. O escritor não é definido pela chancela que recebe, mas pela relação que estabelece com a própria escrita.

E é aí que a escrita criativa aparece como elemento central do nosso tempo. Ela não existe para ensinar truques de narrativa ou para formar profissionais de mercado. Ela existe para dar a qualquer pessoa o direito de produzir a própria voz. Não se trata de técnica para conquistar prestígio. Trata-se de técnica para conquistar presença. A escrita criativa é o espaço em que alguém assume a responsabilidade de construir sua própria linguagem — e isso, em si, já é literatura em potência.

Pense em alguém que escreve diariamente, mesmo sem publicar uma linha sequer. Alguém que anota ideias no celular, que revisa parágrafos em silêncio, que volta ao texto como quem retorna a uma casa interior. Essa pessoa não precisa do reconhecimento externo para existir como escritora. Precisa apenas da continuidade de escrita que sustenta sua própria consciência. O reconhecimento, quando vem, é sempre posterior. O que define o escritor não é o mercado: é o texto.

A pergunta “quem decide o que é literatura?” costuma ser feita como se houvesse um tribunal invisível definindo o que entra ou o que fica de fora. Mas a literatura não se deixa capturar por essa estrutura. Ela se realiza quando o leitor sente que algo ali o desloca, o atravessa, o transforma. E esse efeito não depende de selo, nem de prateleira, nem de prêmios.

Escritor é quem encontra uma voz e a sustenta na página. Escritor é quem precisa escrever para existir. Escritor é quem insiste na frase como lugar de pensamento, mesmo sem plateia. A escrita criativa apenas dá nome a esse processo. O escritor de verdade não é o que espera alguém autorizar sua identidade. É o que escreve. E continua escrevendo. Porque é ali — e só ali — que sua vida encontra forma.

No prelo: Macbeth ganha nova tradução pela Penguin e reafirma seu lugar como drama definitivo sobre ambição e poder

 DIVULGAÇÃO 
07/11/2025

Um trio de bruxas, uma profecia e o início de uma espiral de violência que atravessou séculos. Macbeth, peça central da dramaturgia de William Shakespeare, retorna agora em edição da Penguin Companhia — e segue fascinando leitores por suas camadas de perversão, culpa e delírio político.
A trama começa quando Macbeth e Banquo, generais do exército escocês, são abordados por três bruxas que anunciam o futuro: Macbeth será rei. Aquilo que parece uma visão distante desencadeia uma cadeia de assassinatos, paranoia e usurpação, transformando o campo de batalha em palco íntimo de ambições e neuroses.

Nesta edição, a peça ganha fluente tradução de Lawrence Flores Pereira, além de uma introdução de Carol Rutter que recoloca Macbeth em seu contexto histórico e teatral, e um posfácio de Régis Augustus Bars Closel dedicado a discutir a autoria do texto.

Séculos após sua estreia, Macbeth permanece um dos pontos mais altos da literatura ocidental — muito por conta da figura que continua a magnetizar intérpretes e leitores: Lady Macbeth, talvez a mais complexa e inesquecível mulher criada por Shakespeare.


Penguin-Companhia
192 páginas


Pra que serve a literatura? E a quem ela serve?

 OPINIÃO 
06/11/2025 | Tiago Juliani

Há uma pergunta que circula com a tranquilidade de quem julga estar sendo objetivo: pra que serve a literatura? A pergunta carrega uma exigência silenciosa de funcionalidade, como se ler devesse oferecer um benefício palpável, algum tipo de ferramenta para a vida imediata. É uma pergunta que nasce de um tempo em que tudo precisa ser útil, mensurável, aplicável. O que não produz efeito prático rápido parece luxuoso demais, “inútil” demais, quase fora de época.

Talvez seja por isso que tanta gente recorra às redes, ao feed interminável, aos vídeos motivacionais de impacto rápido. Eles aliviam o cansaço e exigem pouco do sujeito. Eles não pedem silêncio, nem tempo, nem aprofundamento — e o que é essencial aqui: não pedem que a pessoa se transforme em alguém capaz de pensar a própria vida com mais complexidade. Bastam segundos. O algoritmo entrega pequenos significados instantâneos, comprimidos, mastigados, fáceis de consumir. É confortável acreditar que se aprende algo ali.

Mas não se aprende. Se anestesia.

Ao mesmo tempo, existe o fato concreto da exaustão cotidiana. Não é simples sentar para ler depois de um dia inteiro de trabalho, depois de horas de deslocamento, depois de enfrentar a dureza do mundo real. E aqui o problema é duplo: vivemos num sistema que rouba o tempo — e as pessoas, porque estão exaustas, acabam desejando justamente aquilo que exige menos delas. Não é culpa individual, mas também não é só estrutura. É um círculo vicioso: a estrutura nos desmonta, e nós, desmontados, buscamos alívio imediato — o que nos desmonta ainda mais.

E é nesse ponto que a literatura se torna absolutamente necessária.

Porque a literatura não resolve a vida. Ela não oferece atalhos. Ela não traz garantia. Ela não entrega mapa. A literatura faz outra coisa: ela devolve profundidade. Ela restitui camadas. Ela cria espaço interior em meio à saturação. Ela permite que o sujeito seja mais do que executor de tarefas e sobrevivente do dia. Ler é entrar em outras vidas, e nessas outras vidas encontrar recursos simbólicos para compreender a própria.

A literatura não serve para dar respostas prontas. Ela serve para fazer perguntas que ninguém formula quando está correndo.

Por isso, a pergunta “pra que serve?” está mal colocada. A literatura não serve ao mercado. Não serve ao algoritmo. Não serve à lógica da eficácia. Ela serve ao indivíduo que ainda deseja ser sujeito — não apenas usuário, consumidor, peça.

E talvez seja exatamente isso que a torna tão necessária num tempo como este.

A literatura serve ao que resta de humano em nós, quando todo o resto nos empurra a caber em uma função.

No prelo: Barão decadente retorna à cidade natal em alegoria apocalíptica do Nobel de Literatura

 DIVULGAÇÃO 
06/11/2025

Publicada em 2016 e apontada como o fecho de um ciclo criado em Sátántangó, O retorno do Barão de Wenckheim chega ao Brasil como o romance que consagra o autor húngaro ao seu delírio final: uma parábola feroz sobre ilusões políticas, colapso social e o esgotamento de qualquer promessa de redenção.
Depois de décadas na Argentina e afundado em dívidas de jogo, o aristocrata Béla Wenckheim retorna à sua remota cidade natal, uma comunidade coberta de poeira e ressentimentos. Os habitantes, entregues a delírios messiânicos, projetam nele a figura de um salvador. Mas o que volta é apenas um homem cansado, cujo único desejo é reencontrar o amor da juventude. 

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“O que pode acontecer quando a linguagem é levada além das regras que ela própria estabelece.” (Colm Tóibin) 


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Entre vigaristas de ocasião, uma gangue de motociclistas e um professor recluso que observa o mundo ruir com terror e ironia, o romance monta uma polifonia vertiginosa — riso, devastação e grotesco em proporções literárias raras. 

O júri do Nobel definiu a obra como “visionária e arrebatadora”, capaz de reafirmar “o poder da arte” mesmo em meio ao apocalipse. Susan Sontag já havia dito: o autor é “o mestre húngaro do apocalipse”. Aqui, ele entrega seu testamento ficcional.


Companhia das Letras
512 páginas

Literatura no TikTok: o meio que engole a mensagem

 OPINIÃO 
05/11/2025 | Tiago Juliani

Nos últimos anos, começou a se repetir uma frase sem que ela fosse realmente compreendida: “na era do TikTok, ninguém lê mais romances densos”. Parece apenas um desabafo nostálgico, mas há uma crítica estrutural escondida aí.

Marshall McLuhan dizia: o meio é a mensagem. A frase é famosa e quase sempre citada sem corpo. Mas ela significa algo muito concreto: as tecnologias que carregam a informação moldam o nosso modo de sentir, antes mesmo do conteúdo em si.

Plataformas como TikTok não estão apenas “falando sobre livros”. Elas estão modelando o que pode ser considerado um livro relevante. Se o romance precisa render clipes emocionais de quinze segundos para circular, então não é o livro que está sendo promovido: é o feed que está colonizando a forma literária.

O leitor contemporâneo não chega ao romance de forma neutra. Ele chega treinado por feeds de alta velocidade, educado na lógica da recompensa instantânea. Ele aprendeu a buscar intensidade antes de complexidade. Tornou-se consumidor de “sentimentos concentrados”, não de processos narrativos longos.

A consequência é que a literatura, quando passa pelas mãos das plataformas, sofre uma redução de temporalidade. Não se trata apenas de “leituras mais curtas”. O que se comprime é o tempo da experiência estética. A literatura que exige demora, como ato de escuta interna, de lentidão, passa a se tornar, não um produto, mas um problema.

E é precisamente aí que a literatura ganha uma dimensão política inesperada: todo romance longo, toda narrativa que exige tempo, toda escrita que pede concentração contínua, se torna hoje uma espécie de gesto de resistência. Resistir é sustentar uma temporalidade humana contra a aceleração do scroll infinito.

McLuhan antecipou esse conflito: não é a história em si, mas o ambiente em que ela é recebida que determina o que ela pode ser. Por isso não faz sentido contrapor “literatura impressa” versus “literatura digital”: o que está em jogo não é o suporte, mas o regime de atenção que governa o leitor.

Talvez a pergunta literária mais urgente de agora não seja “o que estamos lendo?”, mas: como estamos sendo formatados para poder ler?

Este bom e velho blog incide nesse ponto frágil entre uma curiosidade honesta por livros e a suspeita de que estamos vivendo numa época que transforma toda narrativa em clipe emocional. Não se trata de cultuar um passado perdido, mas de recuperar a experiência rara de desacelerar o mundo para compreender uma frase com mais profundidade que um swipe.

No prelo: Ana Terra ganha edição especial e reafirma a força de uma das personagens mais marcantes de Erico Verissimo

 DIVULGAÇÃO 
03/11/2025 
RES
Segunda metade do século XVIII, interior do Rio Grande do Sul. Ana, única filha mulher da família Terra, conhece desde cedo uma vida de trabalho duro: lida com colheita, tarefas domésticas e a ameaça permanente de invasões às terras. Nada parece lhe dar margem para imaginar outro destino — até que encontra, ferido à beira de um riacho, o misterioso Pedro Missioneiro, mestiço criado em uma missão jesuítica. Esse encontro acende a fagulha que transformará por completo sua trajetória.
Personagem inesquecível de O tempo e o vento, Ana Terra retorna agora em edição especial. O texto, lançado originalmente dentro de O continente (1949) e depois publicado como volume independente em 1970, atravessou décadas sem perder potência — mais do que um capítulo da formação do Brasil, é um retrato de resistência feminina num território marcado por guerras, disputas de poder e fronteiras ainda por se definir.

No posfácio inédito desta edição, a romancista Morgana Kretzmann destaca Ana como símbolo para mulheres que precisam romper convenções e sobreviver num mundo comandado por homens e seus conflitos. Não apenas personagem histórica, mas presença viva no imaginário literário: uma voz de coragem, esperança e liberdade que continua a ecoar e a conquistar novas gerações de leitores.


Companhia das Letras
168 páginas

No prelo: Bernardine Evaristo revisita a história da escravidão em uma poderosa sátira sobre raça e poder

 DIVULGAÇÃO 
02/11/2025 

E se a história tivesse sido escrita ao contrário? Em Raízes loiras, que chega agora ao Brasil, Bernardine Evaristo ― vencedora do Booker Prize por Garota, mulher, outras ― leva essa pergunta às últimas consequências. Publicado originalmente em 2008, o romance imagina um mundo em que a África se tornou o continente dominante do planeta e são os povos europeus que foram submetidos, traficados e escravizados.

A trama acompanha Doris Scagglethorpe, uma menina inglesa de dez anos que vive com a família na zona rural até ser sequestrada e levada por navio à Grande Ambossa. Lá, perde o próprio nome ― rebatizada como Omorenomwara ― e passa a viver sob violência constante, reduzida a propriedade. Enquanto enfrenta abusos físicos, morais e psicológicos, ela alimenta um único desejo: escapar e voltar para casa.


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“Uma história extremamente inventiva que provoca debates importantes, desafiando percepções fundamentais sobre raça, cultura e história.” (Independent) 


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Com ironia, precisão formal e desconforto calculado, Evaristo desmonta hierarquias raciais, expõe o absurdo das justificativas históricas e nos força a olhar de outro ângulo para o que naturalizamos. Raízes loiras não é apenas uma ficção criativa: é um espelho invertido do horror colonial, que devolve ao leitor o estranhamento capaz de revelar a violência que estruturou o mundo que herdamos.


Companhia das Letras
312 páginas

De volta ao bate-papo sobre livros, a escrita e seus demônios inquietantes

Inaugurando este espaço para retomar uma conversa antiga: aquela troca sobre livros, leituras e descobertas que começou no Instagram e que sempre rendia os melhores comentários, listas e indicações espontâneas. Aqui, sigo o mesmo espírito, só que com mais fôlego: espaço para ensaios, resenhas, provocações e, claro, para falar dos principais lançamentos literários, que sempre foram o assunto que mais movimentava quem me acompanhava.

Vivemos espremidos entre urgências, telas e distrações que se multiplicam. O tempo encolhe e a sensação é de que a leitura precisa disputar espaço com tudo (e quase sempre perde). O blog nasce para remar na contramão: desacelerar um pouco, criar uma zona livre de ruído, olhar a literatura com atenção filosófica e, ao mesmo tempo, pessoal.

A ideia não é apenas comentar livros. É tentar entender o que eles dizem sobre nós e como nos atravessam. É continuar, em outro formato, a mesma conversa que começou há muito tempo, e que nunca terminou de verdade.

Seja bem-vindo(a) de volta.

Tiago Juliani